SALTBURN
Opinião
SALTBURN não é estranho como andam dizendo por aí. SALTBURN é ousado e corajoso. Colocar o rótulo de estranho é como dizer que a condição humana mais profunda retratada no filme da britânica Emerald Fannell não nos pertence. Pertence. Parece que a Fannell não interessa a zona de conforto. Interessa provocar no espectador um sentimento de repulsa, à primeira vista, torcendo para que ele se permita ler nas entrelinhas. Tudo ali é o lado sombra que margeia — ou muitas vezes — encobre as relações humanas, dizendo que no fundo todos temos nossa parcela de perversidade, interesse, inveja e, como não, crueldade e vingança.
Aliás, BELA VINGANÇA, o longa anterior da diretora e roteirista, já traz essa mensagem vingativa importante. Foi premiadíssimo pela sua ousadia na mensagem contra o abuso sexual, a misoginia e a desigualdade de gênero em todas as esferas. Ela já mencionou nesta obra anterior a hipocrisia das instituições e da sociedade, mas esse tema será a base de SALTBURN, que conta a história de Oliver (Barry Keoghan) , um bolsista da renomada universidade de Oxford, que não tem amigos, se sente um peixe fora d’água, mas consegue fazer um vínculo interessante com Felix (Jacob Elordi), um aristocrata herdeiro, que tem a vida ganha. Chega o verão, Oliver não tem pra onde ir porque sua família é disfuncional e dá trabalho, e Felix o convida pra passar a temporada em Saltburn — que é mais do que uma mansão, é a propriedade monumental onde está o castelo dos Catton.
O que se segue vai além da excentricidade. A diretora satiriza os privilégios e a futilidade dessa classe social que vive como realeza (literalmente). Mostra pais sem noção do que acontece no mundo dos meros mortais. A mãe Elspeth (Rosamund Pike) é afetadíssima, o pai, Sr James, aficcionado por arte; a irmã Venetia é instável emocionalmente e sofre de profunda solidão; o irmão adotivo, Farleigh, é da família até a página dois, porque a cor da sua pele já sinaliza que ele não pertence àquele universo. E nunca pertencerá. Seu sobrenome Start diz isso — estará sempre recomeçando. Nunca chegará ao seu objetivo, terá sempre que se provar. Fato.
Pertencimento é palavra de ordem em Saltburn para os personagens que agem feitos zumbis, alienados, grotescos, num ambiente que vai se mostrando cada vez mais sombrio à medida que Oliver vai se apropriado no pedaço. E faz isso rapidamente, como sinaliza seu sobrenome: Quick. A construção de personas pra fomentar o pertencimento é algo que fazemos todos os dias — a festa à fantasia também traz essa mensagem. Agora, se a diretora pesa a mão nas cenas de sexo, que invadem o território do vampiresco e do grotesco causando repulsa, é pra deslocar o desejo para o lugar do inimaginável, da ambivalência, bem longe do socialmente aceito. Incomoda, ela sabe. E faz isso propositalmente.
Porque, afinal de contas, as metáforas de Fennell são pra gerar essa reflexão sobre os comportamentos socialmente aceitos e reverenciados, os privilégios e a falência moral das instituições, a supervalorização das tradições e a natureza perversa humana que desumaniza a própria espécie. Sobre a nudez, é o mais natural do filme. A discussão é mais profunda do que um belo corpo nu dançando lindamente. O que se discute é a ausência de humanidade e excesso de posses e desejos que desmoraliza e deforma. Como no célebre conto de Hans Christian Andersen, o rei também estava nu em Saltburn. Falta só alguém capaz de enxergar as verdades.
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